SERMÃO DE DOMINGO - Retrato de um homem que acaba de passar a outra vida

 


de Santo Afonso Maria de Ligório

I. Imagina que estás vendo uma pessoa que acaba de exalar o ultimo suspiro. Contempla esse cadáver deitado ainda no leito, a cabeça caída sobre o peito, o cabelo desgrenhado, banhado ainda no suor da morte, os olhos encavados, as faces descarnadas, o rosto cinzento, a língua e os lábios cor de ferro, o corpo todo frio e pesado. Empalidece e treme quem quer que o vê. Quantas pessoas, à vista de um parente ou amigo defunto não mudaram de vida e deixaram o mundo! — Mais horror ainda inspira o cadáver, quando começa a corromper-se. Não se passaram bem vinte e quatro horas que esse moço morreu, e já o mau cheiro se faz sentir. E preciso abrir as janelas e queimar bastante incenso; é preciso cuidar que em breve seja levado à igreja e posto debaixo da terra, para que não infeccione a casa toda.

Eis aí em que se tornou esse moço orgulhoso, esse dissoluto! Ainda há pouco acolhido e desejado nas sociedades, e agora feito objeto de horror e de abominação para quem o vê! Os parentes anseiam por fazê-lo levar para fora da casa e pagam aos coveiros para que o levem encerrado num caixão e o entreguem à sepultura. Outrora gabavam-se o espírito, a beleza, o trato fino e bons ditos; mas pouco depois de sua morte perde-se a memória de tudo isso: Periit memoria eorum cum sonitu (1) — “A memória deles pereceu com ruído”.

Ao ouvirem a noticia de sua morte, uns dizem que era homem honrado, outros que deixou os negócios em bom estado; uns lamentam-se, porque o defunto era-lhes útil; outros regozijam-se, porque a morte dele lhes traz proveito. Por fim, dentro em breve, já ninguém falará nele. Desde os primeiros dias os parentes mais chegados não querem ouvir falar dele a fim de não se lhes avivar a saudade. Nas visitas de pêsames trata-se de outros assuntos, e se alguém por ventura fala do defunto, logo os parentes atalham: Por favor, não pronuncieis mais o seu nome. E entretanto, onde é que estará a alma daquele infeliz?

II. Pensai que assim como vós fizestes na morte de vossos amigos, assim os outros farão para convosco. Os vivos aparecerão por sua vez na cena, ocupando os bens e os lugares dos mortos, e destes já não se faz ou quase que não se faz caso ou menção. Os parentes afligir-se-ão ao princípio por alguns dias, mas depressa consolar-se-ão com a parte da herança que lhes couber, de tal sorte que dentro em breve até se regozijarão de vossa morte. No mesmo quarto onde exalastes a alma, e onde fostes julgado por Jesus Cristo, se jogará e se rirá como antigamente. E a vossa alma onde estará então?

Ó Jesus, Redentor meu, agradeço-Vos por não me terdes deixado morrer quando estava em desgraça convosco. Ha quantos anos não mereceria estar no inferno! Se eu tivesse morrido em tal dia, tal noite, que seria de mim por toda a eternidade? Senhor, eu Vos agradeço e não quero mais resistir as vossas chamadas. Quem sabe se as palavras que acabo de ler, não são para mim o vosso último convite! Confesso que não mereço misericórdia: tantas vezes me tendes perdoado e eu, ingrato, tenho tornado a ofender-Vos. Mas já que não sabeis desprezar um coração que se humilha e se arrepende, eis aqui um traidor que a Vós recorre arrependido. Por piedade, não me afasteis. Verdade é que Vos ultrajei mais que muitos outros, pois que, mais que muitos outros fui favorecido por Vós com luzes e graças, mas o sangue que derramastes por mim, anima-me e oferece-me o perdão, se eu me arrepender. Sim, meu Bem supremo, arrependo-me de toda a minha alma de Vos ter desprezado. Perdoai-me e dai-me a graça de Vos amar para o futuro. Já demasiadamente Vos ofendi. Não quero empregar a vida que ainda me resta, a ofender-Vos, quero empregá-la a chorar sempre os desgostos que Vos dei, e a amar-Vos de todo o meu coração.

— Ó Maria, esperança minha, rogai a Jesus por mim.



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